22 Dec 2024 Ellipse ATUALIZADO 03:06

Publicado

17/04/2023

Atualizado

31/01/2024
Publicação

A assuense Dandara faz história ao ser a primeira travesti do Brasil a advogar no Tribunal do Júri

Dandara da Costa Rocha tem 28 anos, é graduada em direito pela Universidade Federal Rural do Semiárido, e em 11 de Janeiro de 2023 foi aprovada na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

A advogada nasceu em Assú, cresceu no centro da cidade, foi aluna no Complexo Educacional Santo André (CESA) e concluiu o ensino médio no IFRN Campus Ipanguaçu.

A trajetória de Dandara é inspiração e exemplo, mas não foi uma caminhada fácil. Para conhecer um pouco mais sobre os desafios e conquistas da doutora o Observatório da Várzea a entrevistou.

Leia agora a entrevista na íntegra:

Perguntamos a Dandara se existe preconceito por ela ser travesti e hoje ocupar um espaço importante na sociedade. Em resposta a doutora disse:

“- Considero essa pergunta retórica.

Para se ter uma ideia, consoante “Dossiê 2023”, da ANTRA, o Brasil é, pelo 14º ano seguido, o país que mais mata pessoas trans e travestis. Dentre as mortes, contam-se pessoas mortas por ação – homicídio, com uso de arma de fogo e de armas brancas – e por omissão – o ciclo de violência que nasce com a discriminação na família e na escola, passa pela negação de nossa existência pelo CIStema e deságua em suicídios. Das 131 mortes em 2022, 130 referem-se a mulheres trans e travestis e uma a homem trans.

As discriminações que nós enfrentamos são diárias e quase imperceptíveis para a população, mas que são dolorosas para nós. Diariamente, temos negado os direitos aos nossos nomes, pronomes, roupas, linguagens, ideias e jeitos, o que também é uma forma de nos violentar e de nos assassinar. Assim, como qualquer trans, eu estou sujeita a sofrer situações vexatórias como essas.”

Sobre as pessoas que estiveram ao lado da advogada durante a trajetória, Dandara destacou alguns nomes:

“Na família, Maria Luiza, Lívia Maria e Maria Cristiana. Na faculdade, meus amigos Kadu Brito, Luan Fonseca, Dacielle Ingá, Dimas Vieira, Vagner Brito, Ana Vitória Pontes, Dayane Mesquita e Milena Souza.”

Sobre o sonho de ser advogada, Dandara informou que como geminiana autêntica, ao longo da vida se imaginou seguindo as mais diversas carreiras. Na sétima série, ela quis ser médica pediatra, na oitava e no primeiro ano do ensino médio quis ser professora de história e durante três dos quatro anos que passou no IFRN, idealizava ser professora de Língua Portuguesa.

Ainda no Campus Ipanguaçu, Dandara conheceu as lutas dos professores por condições dignas de vida e trabalho durante duas greves, o que reforçou o seu desejo pela docência.

Diante desse desejo, o primeiro curso para o qual foi aprovada foi o de Letras – Língua Portuguesa, na UFRN em 2014, e no mesmo ano foi selecionada para Design no SISU do meio do ano, também na UFRN. Neste mesmo ano, foi morar em Natal, e a efervescência da universidade e política do período a aproximaram do movimento LGBTQIA+ (em especial, das demandas das pessoas trans, travestis e não-binárias), do estudantil, do sindical e do partidário.

Dandara nos disse que no fim daquele mesmo ano, ainda estava desencontrada – pessoal, intelectual e academicamente –, fez o ENEM mais uma vez, decidida a por em prática mais uma mudança de matrícula, dessa vez para o curso de Comunicação Social com Habilitação em Rádio em TV, mais uma vez na UFRN, onde passou a cursar em 2015.

“- Desde 2013, havia descoberto e estava cultivando meu amor pelo cinema, de forma que o próximo de trabalhar com a 7ª arte a partir de uma graduação era a citada.

Finalmente, em agosto de 2016 – três meses após o golpe perpetrado contra a então presidenta Dilma Rousseff –, com minha consciência de classe e gênero mais amadurecida, e temendo a conjuntura política, comuniquei aos meus pais minha decisão de retornar a morar em Assú porque eu iria cursar Direito na UFERSA.”

– Disse Dandara ao Observatório.

Durante 5 anos e meio de graduação, a hoje advogada manteve acesa as ideias de que a chama da sua paixão pela docência não havia se apagado (tanto que foi monitora de 4 disciplinas, durante mais da metade do curso) e de que a advocacia seria uma forma de fazer um instrumento ativo nas lutas por justiça social.

Quando questionada se o fato de ser mulher trans em algum momento limitou seus sonhos, Dandara respondeu:

“- Não, eu diria que os impulsionaram que os alimentaram – e alimenta – de esperança. Quando discente da UFRN, conheci pessoalmente Leilane Assunção, a primeira mulher trans professora em uma universidade pública no Brasil, que em 2017 disse o brilhante pensamento ao Lide Jornal: “Quando a gente é trans, a militância não é uma opção.” É um imperativo ético sobre as nossas vidas: ou a gente luta ou a gente morre. E mesmo lutando a gente morre”.

“Desde que eu havia decidido me graduar em Direito na UFERSA, procurei fortalecer minhas consciências inseparáveis de classe, identidade de gênero, raça e lugar para que eu não me perdesse nas “lentes jurídicas coloridas”, como afirmou Friedrich Engels. O sentido de luta como “imperativo ético”, trazido por Leilane, me levou a reivindicar meu (então) nome social nos registros universidades, assim como a construir o Centro Acadêmico Marcos Dionísio”.

“Entretanto, não dá para dizer que o CIStema – isto é, a cisgeneridade enquanto um dos pilares do sistema capitalista-racista-patriarcal, chamado de “nó” por Heleieth Saffioti – não atentou contra os meus objetivos. Não há como citar o contexto das eleições presidenciais de 2018, nas quais o candidato vencedor e seus comparsas levantaram sem medo a bandeira da moralidade e do pânico moral de “Deus e família” contra pessoas trans e travestis, o que, sem dúvida, colocou nossos corpos como alvo de uma política de morte e desassistência por parte do Estado brasileiro. Mas isso, só serviu para reoxigenar as lutas dos movimentos de pessoas trans e travestis, também me fortalecendo individual e coletivamente.”

Sobre as referências de Dandara, ela destacou algumas :

“-No cinema, admiro o trabalho inovador e ousado de Pedro Almodóvar. Na música, amo Linn da Quebrada e Liniker – ambas essenciais na construção da minha consciência de ser travesti desatrelada a necessidade de procedimentos médicos e estéticos invasivos. Na literatura, desde 2012 sou fã de Caio Fernando Abreu, que escreveu com muito afinco também acerca das travestis paulistanas da década de 1970, sendo ele responsável por me influenciar na escrita dos meus próprios textos. Também nas artes, destaco o incomparável trabalho de Rita Von Hunty, personagem drag queen do professor Guilherme Terreri que tem um canal brilhante no YouTube.

Nas ciências, aponto os trabalhos da psicóloga Jaqueline Gomes de Jesus e da pedagoga Letícia Nascimento, que se debruçam sobre o desenvolvimento de teorias e práticas transfeministas; o professor e cientista social Rafael Dias Toitio, que defende e discute que as identidades de gênero e as orientações sexuais são essenciais para pensar relações de poder e estratégia política; o advogado e professor Paulo Iotti, responsável por ser o causídico das ações no STF do casamento homoafetivo, da retificação extrajudicial do nome civil das pessoas trans e travestis e da criminalização da LGBTfobia.

Na política, aponto os incontornáveis nomes de Erika Hilton, Erica Malunguinho, Robeyoncé Lima, Linda Brasil, Duda Salabert e Thabatta Pimenta, sobre quem escrevi meu Trabalho de Conclusão de Curso da graduação. Por fim, não menos importante, tenho como referências de militâncias minhas amigas travestis Pietra Azevedo, Ana Vitória Pontes e Maria Olisa Kahlo, e Glendha Rocha, a primeira trans a conquistar uma graduação na UERN Campus Assu.”

Sobre a área de atuação que pretende seguir sua carreira de advocacia, a doutora revelou ao Observatório que há muito antes mesmo da graduação, as Ciências Criminais despertaram seu interesse, pela sua complexidade, suas contradições, seus limites e suas possibilidades.

Dandara acrescentou: “tive um professor de Direito Penal chamado Walton Souza. Desde antes de ser sua aluna, o professor já me tratava com um respeito tamanho que era possível sentir a isonomia em relação a como tratava as outras alunas do curso de Direito da UFERSA. Certa vez, corrigindo em sua mesa um trabalho que havia passado para minha turma, Wallton me convidou a sentar ao lado dele, e disse: “Dandara, eu tenho certeza de que você futuramente estará ocupando o lugar que eu ocupo hoje”.”

Em janeiro, antes mesmo de receber minha carteira da OAB/RN, fui apresentada por meu amigo Willton Gondim ao brilhante advogado criminalista Paolo Igor Cunha Peixoto, que tem atuação no Tribunal do Júri. A partir desse contato, passei a trabalhar com Dr. Paolo Igor, que me abriu as portas para ser a primeira advogada travesti a atuar no Júri, em toda a história do Brasil – com minha primeira participação tendo ocorrido na cidade de Macaíba/RN em 12 de abril de 2023 –, além de compor uma banca defensiva com os advogados Talvane Moura e Sandro Silva, também ilustres tribunos.”

Ao final da conversa, a advogada concluiu:

“Encerro essa entrevista com um pensamento de Janaína Dutra, a primeira travesti a conquistar uma carteira na OAB, que no documentário autobiográfico “Uma dama de ferro” afirmou que: “Todos esses conjuntos de demandas que fazem as travestis serem postas em uma segunda categoria de cidadãs talvez seja o elemento carregador das minhas baterias para ir em frente e tentar vencer os desafios que me são impostos como afirmação”.”

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  • Anônimo

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